Crónicas para dormir (IX)
Quero viver livre de culpa;
Num qualquer mundo intermédio onde um riso não me atropela, e as palavras saboreiam-se clementes.

Escolho não sonhar, à noite.
Escolho uma outra forma de viver nos breves intercalares entre estar desperto e voltar a estar.
Falo em escolher, porque foi treino; é sempre uma escolha entre algo fácil e algo difícil, algo ligeiro e algo fatigante.
Aterroriza-me não ter limites; fechar os olhos para criações que não domino, com eles abertos.
Em que ponto começa a fantasia? O que define as quimeras?
Já sonhei com absurdos e tornei-me crente; já aceitei premissas surreais, realidades utópicas, ectopias universais – o que é que, ao acordar, torna tudo ridículo?
Se eu quebrar a muralha, o que os segrega;
Invadem eles o meu mundo?
Invado eu o deles?
Refugio-me na prevenção: sem sonhos, não concebo divindades, nunca as terei de confrontar.
Não temo o que não vejo, o que não sinto.
2:29
A noite fala numa outra língua: algo inumano, transcendente ao tempo, contemplando-o como um todo: nem novo nem velho, moderno ou arcaico.

Os sons, as dilatações espaciais, o ritmo e vibrações – apaixonam-me, mas nada compreendo, nada em mim se constrói quando ela fala.
É um sentir ignorante, a descoberta do fogo, uma ascensão tecnológica que me ultrapassa.
“É natural.” – penso.
“Sou forasteiro aqui.“
Em delírios, recorro ao “Eu Tarzan Tu Jane” para me fazer compreender.
Ela olha-me, sorri-me condescendente e, num gesto solene, maternal, deita-me nos seus braços.
Em imagens, descreve tudo o que eu não sei, a inocência que me transtorna; pergunta-me porque insisto em fingir, em actuar nestes palcos.
“Porque sou ignorante.” – respondo-lhe.
E ela ri, em gargalhadas doces e ternurentas, de quem vê o cão em histeria com a trela, e abraça-me mais fundo; as raízes no meu âmago.
Sussurra-me pelas artérias, pelo oxigénio no sangue; pergunta-me o que temo.
“Temo sempre.” – confesso-lhe.
E ela aceita, mesmo não respondendo ao que ela me pergunta, ciente das minhas limitações de compreensão, de expressão, de raciocínio.
Envolve-me.
Fecho os olhos.
O dia virá daqui a pouco.
Vem sempre.
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