Propriedade.
Tudo o que existe, em absoluto – a não ser que me escape alguma coisa – já foi, outrora, um recurso natural.
Telemóveis, carros, microscópios – produtos naturais transformados para lá do reconhecimento, transfigurados por um extravagante sentido de criatividade.

John Locke, um filósofo inglês do século XVII, enunciou “vida, liberdade, e propriedade” como direitos fundamentais humanos.
Recentemente, vi o E Tudo o Vento Levou, e um dos temas recorrentes, nas 4 horas de filme, é o da terra, da propriedade. Gerald O’Hara, o pai da personagem principal, di-lo ele próprio, numa das cenas iniciais:
“Do you mean to tell me, Katie Scarlett O’Hara, that Tara, that land, doesn’t mean anything to you? Why, land is the only thing in the world worth workin’ for, worth fightin’ for, worth dyin’ for, because it’s the only thing that lasts.”
Quando era miúdo, vi as 9 temporadas de Uma Casa na Pradaria, e a temática da maioria dos episódios é a mesma: ter e proteger propriedade.
No misto disto, cresceu, em mim, uma questão anterior a estes assuntos – ou na origem deles:
– O que é propriedade e porque é assim tão importante, equiparado à vida e à liberdade?
Afinal, certamente não poderíamos remover a vida da vida.
A liberdade, ainda que a sua ausência não anule a vida, modifica drasticamente as condições da mesma.
Já a propriedade – parece-me de um calibre diferente das outras duas.

(já agora, podemos conceber que este plano – em que a câmara começa por estar próxima dos actores e vai-se depois afastando – foi feito nos anos 30?)
A propriedade faz sentido como modo de ordenar o mundo.
Afinal, quem deseja viver em eterno medo?
Sem leis, regemo-nos pela natureza – pelos ordenamentos mais capazes: força e engenho.
Contudo, até o mais engenhoso e o mais forte de nós pode ser morto – todos partilhamos semelhantes fraquezas – seja a dormir, no que comemos e bebemos ou por todo o armamento que nos permite, ao longe, abater um alvo sem qualquer confronto físico.
Uma vida assim não seria só precoce – mas igualmente de grande desconforto, num perpétuo olhar por cima do ombro, os músculos tensos, o sangue ejectado; a todo o momento, pronto para atacar ou fugir.
Nem precisamos de ir muito longe para ver um exemplo disso: basta nos depararmos (na vida real ou na televisão) com um cão que, numa receita perversa de maus-tratos e falta de socialização, viva neste ininterrupto estado de tensão.
Continua, para mim, a ser dos maiores pecados que cometemos e de onde se manifesta a tristeza mais profunda.
A propriedade também faz sentido como legado.
Uma vez na vida, que seja, a questão nasce da profundeza da existência, tal como – e até derivado de – o desejo irracional de viver, de comer e procriar:
– O que fazemos aqui e o que deixamos para trás?
Mas o Gerald já respondeu, lá em cima:
- “it’s the only thing that lasts.”
A imortalidade de Camões em forma natural, não transfigurada em folhas, capas e contracapas – propriedade.

É a propriedade a segurança que não temos?
A protecção do que não controlamos: os outros e a morte?
Teriam os neanderthals a noção de propriedade, também, com os seus limitados recursos?
Se, de algum modo, conseguíssemos remover estes descontrolos externos, também a importância da propriedade desvaneceria?
O que impede a entreajuda?
A partilha?
O que seria um mundo universal, sem propriedade?
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