Sobre Escrever.


Até ao momento em que releio o conjunto das palavras que escrevo, nunca sei bem se gosto delas, se terei de as reinventar ou se sequer as utilizarei de todo. 90% do que escrevo acaba riscado por cima; dos restantes 10, 9% é transfigurado e reconduzido para que se conecte com o texto – não vá isto ser só um bando de frases soltas – e as sobras, o 1% de insignificância, é a frase ou expressão que inicia o movimento, que contém em si tudo o que o resto procura explicar.
É agressivamente mais fácil de sentir, de compreender sem tentativas de expressão, do que o processo de transcrever algo assim, e preciso sempre de um começo que englobe o intuito – desarmado de artifícios – e só depois procuro nas mãos cheias de sinónimos, de nomes e verbos, pela forma correta de traduzir a minha linguagem no oceano de dialetos próprios em que cada um de nós se especializa. A esperança é que um deles, um só desses dialetos que seja, chegue ao outro lado e alguém o compreenda. Um momento de comunicação. Um único instante em que se quebram as regras gerais e eu, o indivíduo, trago luz a algo que outro compreende também, sobre mim, sobre ele, sobre o meu cérebro e o dele e o modo como os nossos sentidos refletem a realidade e a individualizam. Um momento de partilha. Haverá algo mais pungente do que, no isolamento sensorial que são os nossos corpos, conseguir que alguém nos entenda?

Por isso, para mim, nenhum escritor escreve em grau: primeiro é transcritor, depois tradutor, e só no fim é alguém que escreve; e só por ser incompetente nas primeiras duas. Qualquer transcritor e tradutor capaz, não se massa com os delírios da escrita, já tem tudo o que precisa naquilo em que é bom: um elo capaz de fazer dois cérebros conhecerem-se.

O maior mal de tudo isto é o da descoberta que a escrita pode bem ser só um exercício inócuo, até profundamente inepto para a função que lhe pretendemos, e que o melhor seria silenciarmo-nos; afinal, no fundo, é só um qualquer ego recolhido que fala disso com assombro. Que medo há no silêncio? Não é até ridículo tentar descrever uma paisagem com palavras?

Por vezes, só vejo projeções vergonhosas nos escritores, dos Bukowski’s aos Queiroz’s, e contudo ainda aqui estou, podia estar a fazer outra coisa, a tentar por outra via mais capaz, mas não. É da minha natureza escrever palavras. Acho que faz de mim o pior deles ou até de uma categoria abaixo, já que não sou publicado apenas porque não o consigo ser.

Por vezes, parecem-me todos crianças que aprenderam os arcaísmos como posição social e mentem tão completamente que, quais lunáticos, chegam realmente a acreditar que há algo de essencial nos seus trabalhos, de inovador e importante. A verdade, creio eu, é que outros milhares podiam tê-lo feito também, só nunca tiveram a oportunidade. É tudo arbitrário, e a arte nada mais é do que uma escolha que se toma e se aceita e se define daí para a frente até que alguém lhe mude os contornos. Talvez o nosso maior génio artístico tenha morrido de fome no século XIII e nunca ninguém vai saber dele, não nos chegaram registos nem ele teve tempo para os escrever.

E então? O que se faz com esta informação?
Eu vejo-me obrigado a escrever sobre o assunto porque é da minha natureza escrever palavras; não é de vocação ou índole que falo quando falo de natureza, somente hábito. Aprendi a escrever e a organizar o mundo em palavras; hoje, se não escrevo, gera-se um conflito interno que me mói e me cansa. Se algo há de distinto em mim, é só pela decisão que tomei e perpetuei até hoje de escrever – uma decisão acidental; é assim que vejo todos os escritores.

É daí que me convenço que nunca vou viver para lá do meu ego; começo até a crer que é uma evidência, e uma evidência nada tem que ver com crença mas eu preciso de crer nas evidências para as aceitar – é o quão terrível sou a descobrir verdades, o quanto não fui concebido para saber o que é realmente real.
Temo mais falar errado do que estar errado, e se a distinção parece mínima, não o é: num é ego, noutro é integridade; e enquanto que o ego só quer saber de mim, a integridade atravessa-me e ultrapassa-me. Sempre preferi ser íntegro, mas deparo-me a cada instante com a visão obstruída pelo meu próprio reflexo.

A escrita é hoje, para mim, pouco mais do que um labor herculano para atingir essa integridade que nada tem que ver comigo; talvez por isso já não encontre o mesmo amor pela ficção, já que é nela que me confronto com as maiores e mais evidentes projeções egoístas. Ainda assim escrevo, e quando escrevo acabo invariavelmente a escrever sobre mim, mesmo quando não há diálogo ou pensamentos ou transcrições diretas. É porque, no fundo, tudo isto são tão-só relativismos; nem eu estou certo nem não há nada de errado com o ego e as ficções ou de melhor com a integridade e os desapegos. Fazemos os nossos próprios sentidos, as nossas próprias ambições, como uma rocha no meio do oceano que pretende chegar à costa.

Ainda não aprendi a deixar a maré levantar-me a seu belo gosto, mesmo crente que são só relativismos; até lá, nunca conseguirei parar de escrever.

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