Chuvas de Outono.


Ontem despertei, meio da noite, a penumbra, com o insólito som da mais violenta chuva. Despertou-me a violência, como um carro por entre o nevoeiro, um comboio que se materializou nas linhas no momento em que me encontrava precisamente no centro delas, quando dar a volta ou continuar em frente é a mesma distância, o mesmo tempo. Foi essa violência que me despertou, não a chuva; a chuva, em mim, sempre foi ansiolítica, um sedativo natural por criar uma correspondência – eu e a natureza. A sobriedade da água a cair dos tons cinzentos pinta a solidão com qualquer coisa de enternecedor, como se o mundo não me quisesse sozinho, ou melhor, isolado. Afinal, estamos sempre sozinhos, uma mente só se conhece a si, mas a chuva tem a maternalidade de todos nós, de toda a vida, o sol também mas o sol não nos entende, só nos faz crescer.

Num esforço físico, mantive-me desperto – de olhos fechados e em trânsito para uma outra desregrada realidade; mas desperto. Ouvi a chuva, a intensidade a aumentar em resposta à atmosfera de violência como um maremoto vindo dos céus, a colidir com as paredes, os telhados, a pedra no chão, e o som dos violentos embates a ecoar ao colidir novamente com as paredes, os telhados, a pedra no chão. As reverberações iludiram-me com o fim do mundo, submerso em água da chuva por quilómetros, a morte generalizada por afogamento durante o sono – sereno – ou afogamento após se extinguirem as forças – transtornante.

Assustei-me, não pela ideia de morrer, mas pela sua certeza. É algo que raramente se estrutura em mim, a certeza do que quer que seja, até da morte tenho sempre a dúvida, ínfima, se não serei capaz de lhe escapar, uma poção qualquer ou uma fonte que me mantenha jovem, sei lá eu, já vi coisas que nunca tomei por possíveis e só vivi duas décadas. Mais vinte anos e estaremos no espaço como quem passeia na vizinhança, os carros autómatos serão dilemas filosóficos vigentes quando os travões falharam e a máquina tiver de escolher se atropela os velhos na passadeira ou mata os jovens dentro do carro ao espetar-se contra a parede mais próxima.

De qualquer forma, assustei-me sim, mas pela certeza da morte, do fim das nossas linhas temporais e das relações de causa e efeito que impomos no mundo ao nosso redor. Estruturou-se esta parede – betão compacto – que esmagou, na sua solidez, as criações com que me vou entretendo, os pequenos monstros de Frankenstein que monto e desmonto conforme as conclusões que quero tirar – a certeza esmagou tudo isso e ali ficou, solitária, com a câmara a recuar calmamente, afastando-se mais e mais, até que a parede se tornou num só ponto distante que perdi de vista. Em simultâneo, adormeci.

Ao acordar – já a manhã aberta e o sol a desmentir a chuva da noite – não encontrei qualquer certeza. Como sempre, pareceu-me uma inconcebível existência; tentei recriá-la, a sensação de saber ao certo, mas nada se estruturou. Talvez careça do vocabulário estrutural, o que é requerido para conceber algo tão imenso e tão distante.

A luz que atravessa os estores poderia preencher essa lacuna; mas são os meus olhos que a recebem, o meu cérebro que a compõe, o meu ser que a define. Creio nela, porque crer é a única opção que torna a vida navegável; mas não há definitivos na crença, são tão-só projeções de nós mesmos, alegorias complexas num universo que não se dá a conhecer.

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