Mudança.
(Desfrutar das perguntas sem resposta)


Ainda não caí em mim; acredito estar a navegar entre quaisquer paragens surrealistas, amálgamas de várias realidades que combati – por esta e aquela razão – até finalmente me ver livre delas.
Não tenho saudades, tenho ilusões, o que é um tanto pior; as saudades ainda gostam das pessoas, as ilusões só aqui andam por diversão e nós somos entretenimento de fácil acesso.

Talvez por isso ainda não tenha caído em mim; sempre, profundamente, achei a mudança impossível. Pensar em algo a mudar definitivamente aflige-me como a chama na vela que estremece com o vento, e essa aflição, com os anos, estruturou-se numa abstrata ilusão. Não sei. Só me parece um completo absurdo que uma acção minha possa, de alguma forma, influenciar o desenlace de algo tão maior do que eu: a minha posição relativamente ao universo. Parece-me tão mais próprio que tudo isso seja uma ilusão, que na verdade eu nunca saí daqui, que eu nasci neste lugar e sempre cá estive, nestas exatas coordenadas, e o que me lembro são tão-só os implantes de outro corpo.

Pode parecer, mas não há nada de romântico nisto, é só que a ideia de mudança – de transição empurrada pela vontade – sempre me foi estranha, e inato só o crer na estagnação do universo.
Olho à volta, no entanto, para novas paredes de novas casas em novas terras, e não tenho como contra-argumentar que mudança ocorreu, e é esse contraste, o embater desses opostos, que não me deixa cair em mim. É por isso que aqui ando; um pouco por cima do meu corpo como um fantasma que ficou entre caminhos, o raio do corpo ressuscitou e o fantasma não está cá nem já lá vai – um toque de real, um toque de ilusão.

Entretanto, virá qualquer outra coisa; viver envolve deixar os assuntos a meio, a pendência é afinal o que nos move – o que faríamos se tivéssemos os assuntos todos tratados? Virá então outra coisa qualquer que me tirará o folgo e ver-me-ei obrigado a dar toda a minha atenção e momento ao que chamar por mim, esquecendo-me que ainda não caí em mim e que o corpo está mais leve, mais capaz de se sustentar porque já só alimenta um pouco a mais do que ele, chamem-lhe crescer. Tudo isto torna-se em algo banal num abrir e fechar de olhos, uma torrente de acontecimentos que se sucedem, um e depois outro, e já me vejo a correr à minha frente, fiquei para trás de repente e não há nada mais bizarro do que tentar desesperadamente alcançar-me.

Que irrequieta dualidade: o mundo estagnado em que creio vai sempre à minha frente, nem lhe sinto o movimento nem o alcanço, e o meu cérebro não entende como se processam estes paradoxos.

A vida nunca deixa de me despertar a curiosidade, até nos mais breves pensamentos reside um dedo de contradição; algo de ambíguo, de paradoxal, de ilusório. Aprecio-o, apesar da confusão que cria em mim, porque recorda-me que sou humano; metade do que penso são puras fantasias e sei, com confiança, que ainda que o universo se resumisse a duas explicações, uma real uma inventada, nada tenho em mim para sustentar qualquer uma delas. Mas gosto de pensar que nada disso importa, que é no ser com limitações, no existir no coração de todas estas questões que nunca serão respondidas, não corretamente, e no aceitar dessa condição e que somos todos crianças a brincar com algo que não entendemos – daí o fascínio – gosto de pensar que é aí que reside a liberdade: entender as limitações, aceitá-las calmamente, contemplar-nos como iguais, desfrutar das perguntas. Não há virtude em ser humilde ou tolerante – há liberdade.

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