A língua que herdei.


Sozinho, numa casa que não conheço mas que se enquadra na definição (não fosse assim com tudo o resto), não me vejo porque deslocaram-se os espelhos desta sala ininterrupta para a casa-de-banho e, sem outra visão humana, sem um rosto e um corpo externo a mim ao qual me opor, neste ambiente em que não me confronto nem com o meu próprio reflexo, só assim compreendo realmente o vazio a que demos o nome de humano. Nada há aqui; há tudo o que eu quiser. Eu sou o que outro alguém não é, por oposição – se assim não fosse, seria exatamente quem ele é – mas quando não há ninguém, como aqui nesta sala, quando não há ponto de comparação, então eu sou ninguém e posso conceber-me como qualquer coisa que queira. Os limites, as oposições que lá fora me constroem ao indicar-me os limites, aqui não existem. Não há identidade. Não existem valores morais ou éticos, imperativos categóricos. Há apenas um Eu que se quer opor a alguém para se definir, mas não há ninguém.

Acordar amanhã sem palavras – porque parece isso uma distopia?
Há uma natureza em mim que não depende da língua, de qualquer forma de linguagem; há algo em mim que é anterior ao primeiro som articulado e é, por isso, independente da língua. É limitado, é certo, afinal este ser arcaico não é capaz de se expressar como eu; no entanto, não vejo nisso qualquer mal, desde que também não o sinta. Nenhuma árvore se lamenta, não sequer sabe o que isso é – talvez, fossem as forças evolutivas diferentes, e as árvores tivessem aberto uma boca, estruturado as cordas e as tensões e, a seu tempo, ganho o som próprio, a comunicação depois e, por fim, designado uma certa tristeza por lamento. Contudo, isso não se deu, e as árvores não se lamentam nem sabem o que isso é.

Acordar amanhã sem palavras poderia ser uma bênção, se me esquecesse também de sentir todas estas inquietações que me tornam inquieto, os movimentos forçados que não me deixam repousar sobre a vida e deixar que, calmamente, o mar venha e vá. Aprendi a solidão e tudo o resto não porque o sentisse mas porque me ensinaram, porque as gerações me ensinaram, porque herdei a mais viva das artes, a das palavras, sem poder dizer que não e hoje sinto saudade, essa extensa saudade, porque ela chegou a mim pela linhagem, pela genealogia.
Quantos vivem sem a conhecer? E vivem também.

É aqui que estas palavras me chegam, nesta sala sem ninguém, porque se cá alguém estivesse, então daria alternativa à minha alma para se procurar nesse alguém e assim não pensar mais sobre estas coisas. Ainda tenho tanto a aprender mas não aprendo nada; só retenho informação que ouvi de outras bocas, procurei em mim e não desenhei melhores respostas por isso adotei-as como minhas. Aqui, nesta sala, não o posso fazer. Sou só eu que cá existe; o mundo poderia ter acabado entretanto, que sei eu?, poderia já não ser o mesmo ou ser absolutamente igual, e em nada mudaria como eu sou, nesta sala. Nesta sala vivo eu, conformado com as palavras, num eterno indagar por um modo de expressão que resolva as minhas falhas. A língua tem as mesmas falhas que do eu – pudera, quem a criou afinal? – e, se alguma coisa, permite-me apenas defini-las melhor, dar-lhes clareza. A língua perde-se comigo nas definições das perguntas que dançam em meu redor; mas deixa-me sempre sozinho quando as quero responder.


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