Mil Homens
literatura. música. arte digital.
Sinceridade e expressão.

É manhã; mas já terminou o início do dia. Lá fora, algures escondido por entre prédios e árvores que perfeitamente a ocultam, há uma creche. O início do dia termina quando ouço a crianças a gritar, é o anúncio que se perdeu a timidez do sono, a quietude do que ainda desperta. Entristece-me porque é aí, nesse breve despertar, no silêncio comunitário, que encontro o conforto mais honesto de todas as interações humanas.
Procuro, mais do que tudo, a sinceridade; ser honesto comigo mesmo. Não sei porque procuro isto em vez de outra coisa, já que apesar da ideia parecer descender de um qualquer universo perfeito, pensada realmente – até às últimas instâncias – não há qualquer razão para que eu o faça, para que me empenhe numa tarefa assim. Preferia desejar algo diferente; algo mais inevitavelmente frutífero, e uso este advérbio porque é, à letra, o que queria: algo cujas consequências frutíferas fossem inevitáveis.
Temo caminhar uma vida inteira sem dar um passo; ou dá-lo às voltas. Na verdade, ainda nem entendo bem como se anda: sinto-me sempre capaz de desaprender até as mais básicas ferramentas – e tudo isto porque quero ser honesto, absoluto sincero, integralmente ciente de mim e do que me faz. Vamos todos morrer, um a um e aos montes, e eu deveria mentir esplendorosamente, ser um quadrado de três lados e vomitar sempre que bebo demais; mas não. Nunca vomito, nem mesmo quando bebo demais; e não é por não entender o bem que me faria, mas sim porque sei que não há nada que mais despreze do que vómito e não me consigo convencer do contrário.
São estas verdades; quando encontro uma destas assim, já não a deixo ir. São poucas e venero-as porque me dão um momento de tranquilidade, uma lei indiscutível pela qual viver.
De resto, sou desregrado e não há nada mais aterrorizante do que minar todos os pressupostos. Vivo sem saber o que limita o meu universo e, por isso, concebo todos os horrores que a imaginação se folga a conceber sem qualquer domínio sobre ela. Tenho, tão-só, o cansaço; cansada, a mente refugia-se nas funções vitais e eu respiro – porque é vital – num alívio livre de cenários teatrais. Eu escrevo todos os dias, estas peças absurdas, vejo-as todos os dias. E todos os dias decido se me perco nelas, nos seus enredos desfigurados, ou se as enfrento ao sair pela porta de entrada, a que me desagua no mundo que aprendi a estranhar.
Poderia resumir tudo isto em sinceridade e expressão. Sinto que minto a cada palavra que digo, mas pior é sentir a inevitabilidade do encarceramento destas formas de expressão que me foram destinadas, estes jogos comunicativos em que associamos um som ou um gesto a algo – eles não nasceram para designarmos o mesmo, mas tão-só para nos entendermos no mais básico dos sentidos: o que nos protege de nos matarmos por trivialidades.
Talvez se eu me calar, se deixar os sons para a natureza que sempre se expressa com barbaridade, talvez resida aí algo mais honesto do que a minha voz a proferir qualquer uma destas palavras. Afinal é no silêncio, no início dos dias, quando a massa humana dorme ou desperta contrariada, que me encontro.
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