Duplicado.


Dei comigo numa rua cinzenta, apertada pelos edifícios que vão quebrando as leis da física para crescer. Vão dar tecto a uma nova família, noutros tempos dariam proteção à arca – a única peça de mobília de toda uma geração – que serviria de mesa de jantar, cadeira de repouso, secretária de estudo.

Só nos cruzámos porque seguíamos em sentidos opostos, ainda que caminhando com os mesmos pés. Num clarão conciso e plastificado, vi-me no meu corpo mas distante de mim. Eu; mas ali, para lá de aqui. Eu; mas a dobrar, desdobrado.

A rua cinzenta manteve-se cinzenta; digo-o e declaro-o com confiança porque foi onde me concentrei na vergonha de me ver. Foi um choque, um tumulto interno, mas como em qualquer experiência tumultuosamente íntima, o mundo não correspondeu ao aparato e manteve-se, como disse, cinzento, carregando a cor como uma mãe carrega um filho – no âmago do peito, em dicotomia com o resto do mundo.

O cinzento é das nuvens. É do céu que se esconde e do sol que se perde, esbatido no topo dos prédios. O cinzento é do inverno, dos dias que azedam mas não muito, o suficiente para estagnar o tempo e contradizer as mudanças e as vontades. O cinzento resiste, aos choques e às violências, e lentamente sobrepõe-se.

Passei-me mas não me olhei de volta. Foi bizarro porque vi-me num só sentido. Seria de esperar algum reconhecimento na experiência de nos cruzarmos connosco mesmos, mas só eu me vi; não me vi do outro lado.
Distraído, caminhava com um sorriso temperado, de quem só teme as grandes coisas, as que se distinguem facilmente. Descobertos pelo sorriso, vi um vislumbre dos dentes: um amarelo deslavado de quem bebe demais e se deita sem memória, com os dentes por lavar e a cama por fazer, as refeições encavaladas numa só, feita entre amigos, agora a decompor-se no estômago – o forno do organismo que dorme descansado.

Com quem bebes tu? Com quem comes? Onde dormes? Com quem te deitas, quando vais dormir?
Nunca pensei ver-te aqui, nesta terra desaguante, onde os estranhos nunca são estranhos porque são todos turistas. Coimbra já não estranha ninguém, mas eu estranho-te ao ver-me em ti. És uma criação qualquer que se excedeu, que desapegou-se de mim mas não morreu como é costume e pressuposto; em vez, ganhou uma vida própria e caminha com os meus pés, longe de mim, em contraste.

Como é ter um mundo? Uma saudade? Um peito que arde, poeta, que queima sustentado pela mais pequena chama?

Cheirei-me, no movimento que o corpo fez a passar por mim, no ar que empurrou e que se veio encontrar comigo, cheirei-me. A quem cheiras tu? Sinto odores que não são teus, corpos que te tocam e te sentem, não te envergonhas? Onde vais com tanta pressa?

Que sabes tu de mim? Eu não sei nada de ninguém.


Voltei à rua cinzenta e já não me vi. Num momento, ouvi passos nos ecos dos sons por vir e pensei que seria eu, de volta à mesma rua indiferente, causando em mim a mesma dúvida, o mesmo abalo emocional de quem perdeu os cones dos olhos, essas magníficas células – mas não; não era eu, talvez fossem os ecos de sons passados.

Ainda assim, aguardei-me paciente. Desejei com ardor pecaminoso, queria ver-me chegar como as pessoas chegam após um dia longo – com a fadiga intolerante, cansada de se conter, de se vestir com tolas roupas. Mas dei por mim a fugir, quando ficou tarde e já não sabia o que ia ver. Temi encontrar-me descansado; com o mesmo sorriso temperado de quem se descobriu tranquilamente, ao longo do crescimento, do fazer-se homem.

De costas, ainda ouvi os ecos, agora mais próximos, mas não lhes dei atenção.
O canto dos grilos informou-me da noite, e a noite envolveu-me até de manhã.

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