Gregos e Bárbaros.


Estas palavras cansadas são sempre mais difíceis de prender. Têm tendência para a abstração, para o ridículo, para a desconexão textual e alterações bruscas de tempos verbais. Já lá vão os tempos em que me permitiria a divagar assim, numa fragmentada busca de sentido que se inventa a posteriori. Agora exijo mais; que mais não seja porque o tempo é finito, a carne é finita no seu estado coeso e preciso dela assim, coesa, para escrever e pensar sobre as coisas.

Haverá algo mais humano do que viver a finitude em busca? São demandas que se propagam, como as estações, de geração em geração. Morrem e nascem inscientes que se repetem e que, na história, todos se acharam o clímax da narrativa, o consumar da arquitetura dos séculos.
Já eu, mais cansado do que ninguém das megalomanias humanas, procuro abstrair-me. Quero perder-me, como todos se perdem, mas quero fazê-lo nos meus termos: a investigar, sem ponderar se há fim para o que investigo. Quero ser uma ferramenta; um martelo cujo telos não é a estrutura que ajuda a montar ao enfiar o prego na madeira, é sim o ato em si – o movimento que atualiza a potência do martelo em martelar. Se o prego vai edificar alguma forma bela ou a mais horrorosa de todas, nem sabe o martelo nem quer saber.

Quero consciencializar-me de que digo as mesmas coisas que outros já disseram, de forma pior ou melhor do que a minha forma de o dizer, mais abstratos ou concretos, sintéticos ou biológicos; e assim proteger-me de quaisquer heroísmos homéricos. Tão-só, ir vivendo – esse conceito que se prende em não significar nada de efetivo, de atual, de ativo, resistindo ainda e sempre ao invasor, na sua aldeia em potência.

Com as palavras – como com as outras artes – vou construindo esse chão que se investiga a si mesmo em contínuo, num ato tão duradouro quanto a vida daquele que o constrói. E se, por vezes, por entre as pedras que disponho, me aparenta ter agarrado uma mais brilhante, de maior peso, que se agarra a mim também quando a coloco na calçada – ainda que por vezes pedras destas surjam, pois eu trato-as de igual modo às outras todas. Hoje sei, nos limites do saber, que nada se descobre, só se vai descobrindo num exercício de dialética: seja ele entre o presente e o passado, entre um escritor e outro, ou por entre a difusão artística do indivíduo que se transfigura e discute consigo próprio.

Hoje escrever é, mas do que qualquer outra coisa ou em qualquer outro ponto da minha vida, esse exercício de dialética. Uma acesa discussão entre o eu das minhas mãos e o eu da minha mente; um diálogo em que se perdem as indicações das personagens e ficam só as palavras e as pontuações, já não sendo mais importante quem diz o quê ou se sequer há alguém para dizer alguma coisa. É o ouvir contar de uma história, de olhos vendados, por uma voz abstraída da física.

Hoje escrever é, então, um exercício em que eu não sou necessário, por assim dizer. A minha função é vital, exclusivamente vital, e o resto é construído sem me envolver. Isto porque a minha opinião não interessa, mas não no pueril sentido pejorativo. Não há nada em mim de interesse porque só a humanidade, essa abstrata noção, é realmente algo que de alguma forma partilho com todos os que coabitam comigo. Porque tão-só essa coisa que seja lá o que seja – a humanidade – e essa noção que se seja lá do que for – de algo partilhado – somente isso, dizia, é a raiz do ser, é profundo racial, é traduzível na experiência plural. A minha pessoa – nos seus individualismos e egocentrismos – nada mais pode ser do que um obstáculo evolutivo para entender algo maior do que eu, do que nós.

Já os gregos chamavam bárbaros aos que não falavam grego. Não somos todos, cada um, gregos e bárbaros?

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