Mil Homens
literatura. música. arte digital.
Nudez.

Estou nu; as roupas, todas são largas, desajustadas, e as forças para me vestir ficaram no chão onde morri. Só vê-las é de um cansaço tremendo, quanto mais erguê-las e interromper o meu pensamento com o seu frio toque.
Nem a solidão vejo já forma de vestir; e é aí que reconheço a evolução, um crescimento sobre a terra imunda da natureza que nada já tem para me oferecer. Conheço as árvores e as flores, os pântanos e os vulcões, as fundas cavernas e o brilhar do sol a que o mundo ascende – já nada é novo ou absoluto; e só o novo e absoluto credenciam a esta terra imunda a capacidade de fazer a alma vibrar. Por isso cresço sobre ela e deixo-a sufocar sobre o peso do meu cosmos: um universo pragmático que nem se apoquenta em vê-la morrer.
Os jeitos e trejeitos do meu rosto, que se contraí no quarto escuro para ninguém, é tradução do desconforto que a carne me faz na alma a crescer. Os deslizes que roçam onde não posso coçar, as bolhas de ar, a compressão do vapor que se quer expelir, e toda a noite alucino com as dores. No meu universo são cores em metamorfose que me transportam ao longo de si, viagens transfronteiriças em que sou um sonho, o mais belo deles todos, o que me ensina sobre tudo e depois se esquece de mim. Deixa-me entre os átomos, no universo subatómico, onde posso dar-lhes energia, revolver-me nos seus núcleos, ou tão-só dormir embalado pelo movimento, onde não há frio, onde não há som. Surgir em todos eles; em tudo, ser parte, imanente, intraduzível.
No entanto, ao abrir os olhos, sou confrontado com a natureza do desgaste. A visão espelhada que se vê a envelhecer, a enrugar-se, e invariavelmente, a preocupar-se com o fim carnal de tudo isto. Não é que não queira envelhecer, não é que negue as mudanças a surtir efeito no meu quebrante corpo, mas repulsa-me o saber que inerente a esta estrutura celular ressabiada, coexiste, nas raízes da carne, a irreverência de sobreviver. É artifício, filosofia de encomenda que se autogera para justificar a violência. São os egos maltratados que regeneram dos meus golpes e se riem de mim, desejosos de me ocultar sobre os seus corpos múltiplos, variegados, quanto mais lhes viro as costas.
Estou nu; quero tentar-me a sentir o frio e recusá-lo como quem fecha os olhos para não ver. Já a noite vai longa, gelada como todas as ignoradas pelo sol. De manhã, haverá geada e o pingar repetitivo do descongelar. E eu estou nu, mas não sei quais são os músculos, não sei cerrar os olhos, e desprezo-me veemente porque não consigo ignorá-lo – este frio desgraçado. Corrói-me como o sangue que me salva de gelar, ainda que eu nada lhe peça, e sinto o diabo a invejar-me tanto quanto eu o invejo. É que dele nada se espera, ninguém o ama e ele é livre do comiserações, mas de mim eu espero tanto que me sufoco com auto-afirmações e autodeterminismos, ao ponto de já só me ver a mim e a este ridículo ego que se abstraí de mim – porque não o quero, porque o empurro, porque o expulso – mas tenho, ainda assim, de o ouvir a lamentar-se e a chorar.
Quem criou a carne e o indivíduo e os juntou, procurava decerto entretenimento. São os seus risos que ouço sempre, quando anoitece e amanhece, quando o sol brilha no alto e quando não brilha de todo, a ecoar sem superfícies, na ausência do tempo.
A vida desmerece-se a cada geração, para deleite desse meu criador. Resume-se, aos poucos, a tão pouco: às fantasias com que brincamos à vida e à morte, aos exercícios psicotrópicos de que criamos hábito. A alma não se desassossega, nasce já inquieta; insatisfeita com o nascer abrupto para um corpo equivocado. Só tarde lhe tomamos consciência porque a expressão máxima, decadente, da liberdade, está nas crianças, expulsas do útero aos berros.
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