A consciência e os tempos modernos.


Inspiro.
Não há ar que entre em mim por prazer, tudo requer labor. Até manter-me vivo exige um profundo gasto de energia que me exalta, primeiro, me cansa, em segundo, e, por fim, ensina-me a aceitar as invariâncias da simbiose que mantenho com as múltiplas faces do mundo. Foi assim, em três passos repetidos, que aprendi tudo o que sei sobre viver.

Ando a ler as palavras dos outros para não ter de ler as minhas. Essas secam quando mudam as estações até que um qualquer rebento surja e se assemelhe a algo novo, a uma nova geração. Os livros deles, tal como os meus, dissertam sempre em círculos concêntricos. Amplificam os medos de um frágil ego que se esconde em abstratas criações, em firmes momentos de afirmação que eles escreveram – é certo – mas daria os pulsos abertos em que como depois se arrependeram, quando releram as mesmas palavras de sempre e, como sempre, por entre os silêncios que segregam as palavras, a mesma infantil fragilidade.

Somos todos iguais, só o expressamos de forma diferente. Como os dias se repetem inscientes uns dos outros, também nós nos repetimos uns aos outros. O que eu digo hoje e amanhã penso, foi pensado e dito milénios antes por quem merecia, mais do que eu, experienciar as maravilhas do futuro, pois eu já nada descubro de excitante num ecrã que se acende com um movimento, pronto a resgatar as palavras que, de outro modo, morreriam no meu corpo como um feto navegante, sem porto onde abarcar. Também eu viveria, mais intensamente, o aço e o ferro e a carne quebrante de outros tempos – mas só por um momento. Logo depois, depois do conflito emocional, as minhas ferramentas orgânicas impor-se-iam sobre o mundo, conferindo-lhe o que sempre crio de previsível, de indiferente à realidade, só para me iludir com o conforto de saber o que esperar.

Somos entidades criadoras; as criações são, no entanto, um breve momento de exaltação que logo serena, nada retém. Com o tempo, caem também elas em previsíveis construções, e qualquer humano atento saberá que o que vê é sempre o mesmo, que o pensa e o que faz são sempre as ferramentas, acostumadas ao trabalho como um qualquer operário, a funcionar, mecanicamente, para nosso entretenimento. Brincar, escrever, matar – sintomas de uma mesma doença que não surge, está sempre lá; não se manifesta, é parte integrante do ser. Vêm dos moldes, as criações, plásticos de tal modo que permitem alterar a forma que delimitam, mas sem nunca quebrar, sem nunca registar algo que exceda os seus limites. Por isso voltamos sempre ao início, deslumbrados primeiro pelo dinâmico movimento, conformados depois com a estática matriz. Dos limites da elasticidade que empurramos em vão, num desespero juvenil, retornamos sempre ao centro, em revoltada chicotada ou solene sujeição.

Inspiro.
Este ar que entra, esta corrente imensa que me preenche, nada significa. Eu escapo à saudosa vontade dos ventos ao ausentar-me. Posso ser ninguém, num absoluto plural humano. Posso recusar-me ao indivíduo e preencher os resguardos, como alvéolos de ar, com o amorfo. Ser complacente não requer esforço ou conhecimento, posso tão-só recolher-me no terno corpo imenso que chama por mim. Posso viver no absoluto silêncio, na recusa do ego, humano estrutural, animal naturalizado.
Aguardar pelo fim do mundo, numa ausente consciência ou consciente ausência, e só sentir o desconforto mais humano: o de partilhar a mesma pele que envelhece mas luta, em nutrientes, contra a decomposição. Deixar a preocupação nesse chão que se alimentará de mim. Viver esquecido da razão, liberto do sentir, reservado a um contínuo suspenso onde não me apresento, não relato biografias – somente estou, por um momento.

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