Entre a Guerra e a Esperança.

A terra dorme, deste lado do planeta. Um infinito sereno, naturalmente pleno e indiferente. Não choveu ainda e, por isso, a terra que dorme, adormece seca e quebradiça, como lábios gretados num subterrâneo qualquer. Há um prolongar calmo da noite que, absorta na manutenção de um universo, não confere à Terra quaisquer privilégios; não fosse a Terra como os outros planetas a orbitar as suas estrelas, ora de frente ora de costas, ora mais perto ora afastando-se.

Foi de forma súbita que lhe tomei consciência – talvez em resposta ao desligar da tecnologia, das luzes e dos estímulos tão agressivos quanto entorpecentes – mas reconheci-me a espicaçar os sentidos numa revolta inconsciente, um transtorno obsessivo a suplicar de mim uma ação, um esforço qualquer compensatório, um balançar das injustiças. Uma exigência, no fundo, para dar sentido, ordem, estrutura à imposição da morte a quem tão-só dormia e queria viver.

Assim, de sentidos espicaçados, de mente reflexa a contrapor a crueza sensorial às notícias de uma guerra, mergulhei na profunda consciência, no animal já racional mas que ainda se vê na espécie, parte de um todo.

Aqui – neste recanto tanto físico como espiritual – não ouço as explosões ou o embate dos corpos desamparados a colidir com o chão, seu último repouso. Não vejo as entranhas dos pais ou as crianças que deveriam estar a chorar, que preferia ouvir a chorar do que neste absoluto silêncio. Talvez estejam em choque, mas nos seus rostos só transparece a ambivalência, a desproporção: a finitude de um corpo perante a infinita violência.

Aqui não treme o chão. Os pássaros debatem-se por conforto nas árvores e os cães uivam na ânsia de algo mais, mesmo não sabendo o quê. Vozes falam ou cantam harmoniosamente, ecoando os risos e as cadências alegres, bebendo e conhecendo-se como amigos ou amantes que irão depois – quem sabe? – odiar ou trair ou magoar profundamente. Momentos de conexão, de ligação, de humana partilha que se reconhece no outro, as suas dúvidas e paixões, as motivações e os desejos, espelhados e partilhados na efémera sonoridade humana. Estes sons, no entanto, chegam-me abafados, retraídos pelas quatro paredes que me envolvem, que não colapsam nem enterram, não desabam sob o impacto do engenho humano.

Serão assim os gritos? Serão assim os silêncios? O tenso silêncio que constrange o coração num antecipar de um fim incógnito, os gritos desolados perante o absurdo dos dias palpáveis, concretos na sua intenção de extermínio; tudo isto é certamente sentido e repartido por todos como o peso de uma desgraça partilhada, de uma revolta inconsequente, de um amor que é desejo pelos breves momentos de paz, pela saudosa ilusão de segurança.

Nada vejo (estou no escuro) mas sei que ao longe, para lá das fronteiras do meu, dos limites da pele e da sobrevivência, dos moldes dos costumes e tradições – para lá da ambiguidade da paz e da justiça, cai um profuso nevoeiro. Ao cair, tudo encobre e o universo também dorme lá, nas ruas sangrantes e túmulos vivos. Os corpos confundem-se, ao perder as cores e os uniformes, e são só leves silhuetas que se interligam no abstrato. Quem morre, afinal? Quem é sacrifício e quem morre anónimo? Daqui, parece que é sempre o povo. Daqui, parecem sempre seus, os atos de coragem, de pura devoção.

As bombas caem – não as vejo nem as ouço; aqui, neste recanto, só as sinto, numa experiência plural e humana, que rasga a carne e me consome ao contrastar a pequenez dos bons atos à imensidão de quem destrói. Daqui a pouco, em qualquer página de notícias, vai dar-se a desumanização: transfiguram-se homens (anthropos) em números, atos sádicos em fenómenos científicos, pedem-se likes e partilhas, e tomam-se lados que se definem em duas ou três linhas de texto. Surgem, discretamente, os rastilhos que assemelham os dias de hoje aos de amanhã, espelhados nos de sempre.

As bombas caem – solenes e indiferentes, não conferindo à Terra quaisquer privilégios. A natureza renova-se – sempre mais forte e prevalente do que o esforço humano de a destruir. O universo mantém-se – ora originando estrelas, ora vendo-as morrer, os planetas, os cometas. Só os homens, cegos em mitos e fantasias, encontram sentido nos atos de extermínio e de extinção.

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