Mil Homens
literatura. música. arte digital.
Inquietude em tempos de certezas.

No cerne, encontro sempre a inquietude. É onde confirmo a minha condição, nesta volatilidade que me cinde, internamente, assegurando-me que não sou doente, só humano. É o ser humano em mim: faz-me quebrante, confere-me a mais profunda desproporção, a que traduzo em tudo o que faço, em tudo o que digo. É esta humanidade – a qualidade de ser sempre frágil, sempre a um passo da salvação ou da miséria – é esta disforme morfologia que impregna toda a obra humana, das artísticas às quotidianas, porque nada mais se estende, universal, como a inquietude, que tudo sustém, tudo inicia.
Espelho-me nesta falha tectónica e crio-me dela. Sou todas as maneiras com que tentei vencer a desunião; e sou ainda todas as alternativas a que recorro, agora mesmo, neste momento em que escrevo sobre elas. Sou tudo isto, construído sobre um chão instável que quer num querer indefinido, que quer sentir e conhecer, amar e compreender, ser amado e compreendido. São, enfim, dois universos desconexos que delimitam esta falha ontológica, sem pontos de ligação para lá da génese da inquietude, essa que dança aos olhos humanos sem nunca se deixar definir.
Entretanto, ruge, ébrio, o século XXI.
De repente, há corpo a dar à inquietação. Pelas raízes da tecnologia, cresceu e tomou forma um equilíbrio perfeito entre criar e conforto, amar e conhecer (porque eu amo o que crio mas conforto-me no que conheço). Por fim, a satisfação da necessidade gutural de almejar, agora no recobro de uma analogia. Já ninguém tem de sentir o mundo; o mundo é agora reduzível, compressível. Eleva-se a nossa sociedade da visão, onde são os olhos que dão realidade às coisas e a primazia do que se vê, silencia qualquer outra forma de existência. O mundo já não se sente, já não se ouve ou se inspira; o mundo estabelece-se num segundo, resumido ao ser visto ou não ser de todo. Passo a definir-me, comunitariamente, ao que se vê de mim, na tensão entre o que mostro e o que escondo.
Quebrem-se estas correntes, por um segundo: o que é um mundo construído no primado da visão? É, desde logo, desde a sua humana criação, um mundo dicotómico, segregante, cego às divergências internas, indiferente à fragilidade que faz o homem. É um resumir da inquietação ao preto e branco, a uma das dimensões, olvidando o confronto, o conflito sempiterno e indefinido que toma forma no cerne. Opta-se por ver o homem como um lado ou o outro, a finitude sempre aquém ou a infinidade inalcançável.
Contudo, é também fundamental para a subsistência da espécie – porque é na definição concreta desta diferença, neste preto e branco entre o que faz parte da comunidade e o que não faz, entre o nosso e o alheio, que aprendemos, que criámos heranças para transmitir o que aprendemos, que traduzimos estas heranças em regras, leis e estatutos. O mundo é funcional porque é visível, primariamente visível antes de qualquer outra coisa.
Porém, o século XXI não ruge porque criou o mundo visível – esse é quase originário com o homem – ruge porque resumiu-o a isso. A existência humana, constitutivamente instável e precária, é agora regulada por uma ferramenta de acesso global, rapidamente consumível, sadicamente narcótica, e que se sustenta e autorreproduz: o público que hoje cria é o público que hoje consome, pronto a redirigir qualquer motivação à barbárie emocional. E cada novo inocente que se acrescenta, encaminhado pela perversa comunhão, acrescenta-se ao ciclo, apresentando-se com nome próprio e foto de perfil.
É a aglutinação da potência humana, antes refletida em dimensões irredutíveis, agora confinada ao mesmo espaço, seduzida pelas mesmas ilusões e dedicada ao mesmo ato de jubilação; frouxas certezas que encobrem poços profundos.
O que acontece à inquietação num mundo de certezas? Onde vive o conflito? No fundo, onde sempre viveu: no cerne que define o homem. A diferença é que, num mundo resumido à visão, onde todos os dias se perdem palavras e formas de expressão, esse conflito perde a capacidade de se mostrar. O homem não se conhece e perdura na mágoa de não ser feliz, crente que é na honra, na posse, no domínio que a encontrará. Busca, em desespero, o reconhecimento do seu próprio valor nos olhos dos outros porque, em si, já só se sabe ver, não ouvir-se ou sentir-se. Tudo o que conhece é o que lhe foi dado a conhecer, num mundo delimitado ao detalhe na estabilidade das certezas; mas o homem não é certo. É ontologicamente frágil, falível, incoerente e conflituoso.
É na patologia de um amar desmedido que se inflete ou na redução dos outros a um desdém negligente, que o desconsiderado, desprezado, humilhado se procura. E vê-se aí nascer a raiz da violência, dos preconceitos, da desumanização, quando os olhos dos outros não expressam o que queremos ser.
Todos somos profundamente frágeis. Todos somos uma guerra por vir, a paz por que se anseia. Só pela consciência desta vulnerabilidade, pode o homem encontrar mediação – uma estima comum, firmada no reconhecimento da mais humana angústia.
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