O futuro do corpo e da condição corporal.


Conforme estendo a mão para agarrar a caneta, conforme a aproximo do caderno para escrever e, lentamente, conforme dou forma à tinta que se projeta na pressão – conforme estes movimentos se concedem, esta causalidade, tomo consciência das minhas mãos, até então numa silenciosa vivência. Também o meu corpo, como um todo, vive em silêncio, um silêncio que eu quebro quando penso sobre ele, quando o considero, o meu corpo, a massa e as forças que o configuram.

Viver é, assim, um contínuo inconsciente esforço por silêncio; ninguém vive quando pensa sobre o seu corpo, quando o corpo é tudo o que vê. Ele tem de se calar – as suas dores, as suas ânsias – para que o indivíduo que se esconde nas intermitências da carne possa emergir e conhecer o mundo. Todo este excesso que ele não é, o que está para lá das suas fronteiras corporais, é nesta relação mediada pelo corpo que o sujeito as conhece, mas na qual o corpo não procura qualquer reconhecimento – preserva-se no silêncio e assume o seu papel de fundo.

Na experiência quotidiana, este seu papel é evidente: afinal, eu não sinto os meus dedos a sentir – simplesmente sinto; ou, pelo menos, é o que o meu cérebro me diz, o que ele me transmite automaticamente quando a pressão na epiderme ativa todo um conjunto de sistemas que para aqui andam, de um lado para o outro, para que eu saiba que seguro uma caneta. Da mesma forma, eu não vejo os meus olhos – senão, tudo o que veria, seria a anatomia de um órgão tão mais harmónico do que eu; a estrutura da íris, o cristalino, a córnea, as massas tecidulares que perfazem todo este corpo e o delimitam em reentrâncias da mais peculiar curvatura. Fosse assim o meu universo, e só veria os meus olhos, saborearia a minha boca, ouviria os meus batimentos, sentiria o meu corpo, cada parte sentindo-se a si mesma. Enclausurado platonicamente: corpo como prisão da alma.

Porém, não é assim; eu experiencio um mundo que não sou eu, ou pelo menos, que se projeta à minha frente. O corpo ausenta-se e, qual túnel, liga-me – continente – ao mundo externo, às ilhas das canetas, das palavras que a tinta dá forma e de tudo o resto, aquilo que as palavras tentam, exasperadamente, comprimir em si.

Se viver exige, portanto, este silêncio corporal, um corpo que, invisível, me permite tocar e ser tocado pelo mundo – se assim é, então intrínseco na definição de vida está a libertação pessoal, o esquecer-me de mim para me estender e rodear-me do mundo que me acolhe e me envolve; está a quebra do homem como mónada, como célula autónoma e autossuficiente. Surge, destarte, uma dimensão de pertença que me recebe e me entrega, aquilo que em mim é comum a tudo o resto. Como que um mundo do qual eu faço parte em cada canto, em cada objeto inanimado e em cada ser que vive o seu também silencioso corpo. Por outras palavras: o viver surge como um deixar-me ir, onde esqueço que tenho um corpo e abraço o mundo como se ele me pertencesse numa pertença mútua e recíproca.

O que é este viver, no entanto, numa sociedade visual? Como se transfigura a relação com o corpo, que potencia a relação com o mundo, numa sociedade de corpos sentados, exaustos, em dores que exigem atenção? Num microcosmos sem sentidos, onde todas as formas de experiência invisual – o ouvir, o provar, o sentir – retraem-se perante a hegemonia do entretenimento alienado, como sobrevive um corpo, e o humano que se faz humano através dele?

É à visão que recai a culpa. No fundo, é ela quem nos engana ao sustentar este microcosmos de regras e estatutos, este edifício social, maternidade onde nascemos, escola que nos educa. Ao ver, dou-lhe toda a primazia, e soberana, a visão transfigura-se e prospera na cultura, enraíza-se na tecnologia. Hoje, a existência é produto da visão, que controla todas as formas de vida e de valor. As espécies que merecem ser salvas são as que são belas a morrer; os rios secos preocupam porque as câmaras gravam os esqueletos dos peixes; as crianças só nascem quando o flash inicia-lhes a vida. A realidade é o que se mostra, o que é visto.

Contudo, é já há milénios que vivemos determinados, antropologicamente, por esta primazia da visão; uma marca ancestral que nos demarca do mundo, ao conferir-nos um modo distinto de viver. Os animais, nas suas múltiplas primazias – ora apaixonados pelo que ouvem, ora concentrados no que os dedos sentem – mesmo que partilhassem da nossa consciência, da capacidade de pensar sobre o próprio pensamento, continuariam incapazes de viver connosco, de partilhar connosco a sociedade. É que este edifício é nosso; animal algum entenderia ver a sua existência reduzida à valorização visual, ter nos olhos o critério de reconhecimento social.

Por isso hoje, mais do que nunca, a visão é condição intrinsecamente humana. E o que mudou hoje, comparativamente aos tempos que já lá vão, é que nunca foi tão fácil, tão instantâneo, desenhar a própria criação; concebermo-nos, cada um de nós, como quisermos. Poderá pensar-se esta realidade como um ato livre, a liberdade em tal pureza que penetra na própria essência de cada um; contudo, num paradoxo viciante mas engenhoso nos seus próprios fins, este ato livre é uma forma de enclausuramento pois a validação, a existência de cada indivíduo, mais do que nunca, está restringida a este ato de mostrar, de se expor ao outro, a um outrem global como um circo digital em perpétuo espetáculo.

Todos vivemos condicionados por este edifício social. Ainda que me ausente dele, a vida já só se conhece dentro dos seus moldes, dos seus limites, das suas formas de publicidade e das suas definições do que é ser livre, ser feliz, ser amado, ser humano. A genialidade do edifício é esta: fora destes limites, o ser humano – seja quem for – não existe socialmente, pelo que qualquer mudança, qualquer reforma, qualquer revolução tem obrigatoriamente de atravessar o edifício o que, pelo caminho, torna-os ineficientes, inconsequentes, uma brincadeira de crianças que, como tudo o resto, degenera em puro entretenimento.

Fora do controlo destas humanas mãos, os erros humanos prendem-se ao homem e tornam-se em variáveis que o edifício manipula. A porta está sempre aberta, não só como abertura a cada novo corpo, mas também porque nenhum ser se conforma tanto como o que vê a sua liberdade a um sereno braço de distância. Talvez porque ninguém queira realmente ser livre, só quer acreditar que o poderia ser. E nunca esse equilíbrio foi tão perfeito – essa perfeição sempre dissonante da humana desordem – como neste mundo que se avizinha. Este mundo da visão, onde o corpo que sente num sentir intimamente humano, raiz da empatia que nos faz e nos liga, morre sozinho, em exílio, mero produto consumido e descartado.

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