Mil Homens

literatura. música. arte digital.

Os sons dos outros.


Resta-me uma página neste caderno; e vejo-me a hesitar perante a necessidade de definir o momento. Odeio ser criador e ter de procurar pelas palavras certas: as que confeririam um sentido absoluto a tudo isto, as que harmonizariam o fim e o começo. Repare-se que até estas observações podem, na verdade, ser artifício, e não haver qualquer caderno, qualquer página, qualquer hesitação. É, talvez, o que me é mais custoso: estes sentidos forçados que temos de criar nas coisas para que tenham sentido, para que signifiquem algo. Logo eu, que sempre fugi da criação, sempre optei por ver o mundo e aguardar que fosse ele, indiferente, ignorante de mim, a criar-me; alguém sem grandes demarcações ou precisos pontos, como uma noção geral, um conceito alheio, cinco sentidos articulados e embebidos na contemplação de tudo o resto.

Apesar disso, aqui estou eu: sentado e obrigado a criar um mundo, a dar ordem ao caos que recebo dos sentidos e à consciência que daí emerge. E enquanto aqui estou – o corpo depositado na tarefa de escrever esta última página, por entre o silêncio comedido deste apartamento que se aparta do tempo – enquanto aqui estou, dizia, imerso no esforço da criação, pelas paredes ainda me chegam os sons dos outros. Vêm abafados pela dureza dos tijolos, do cimento; pela monotonia do vidro que atravessam, chegando por isso distorcidos e irreparáveis, sempre irreconhecíveis; mas são também severos e impiedosos, sem que esforço algum me faculte a ignorá-los ou, num ponto oposto, a decifrá-los. Repare-se: a angústia vem desta rigorosa indefinição, um vislumbre breve e ambíguo de o que as palavras pretendem dizer. São as definições que não se estabelecem, os sentidos que não se formam – é esta angústia que faz com que o que ouça seja somente a confiança, com que o que tenha seja somente a aflição nascente dessa alheia qualidade de ser confiante. É isso que lhes invejo: estes sons, os sons dos outros – de quaisquer outros – que nunca duvidam, que reverberam sem temor ao propagarem-se pelo ar, pelo ambiente que me é sempre hostil. Neles – nesses sons – encontro este implacável contraste: entre mim e o que eu não sou ou o que eu não tenho, não tive ou não fui.

E agora, o que dizem eles? Riem, talvez, julgando pelo que consigo escutar: uma melodia que me faz ouvir gargalhadas; uma certa doçura que se projeta como um pedido de carícias; uma partilha acomodada entre os seus corpos, os que emitem os sons e os que recebem os sons dos outros. Não sei o que os alegrará, mas sei contudo, forçosamente, que não importa. Sei ainda que não sabem de mim, não sabem que escrevo esta última página e que estão agora eternizados nela – ainda que numa versão abstrata, indivíduos genéricos baseados tão-só nos sons que fazem, estes que eu ouço e a que recorro. Deles, contudo, concretamente – de quem eles são, do que os faz – eu nunca saberei. E mais uma vez, de nada importa; já que eles riem, ainda assim, indiferentes. E é nas suas gargalhadas – que na verdade podem perfeitamente ser outro som qualquer – que ecoam e se propagam e chegam distorcidas até mim, que ruge toda a minha fragilidade.

Gostava de rir também; ou até mais, que eles me ouvissem rir. Gostava que eles se vissem na obrigação de pensar de mim o que eu penso deles. Vestir eu, em vez, a confiança de amar assim, perdidamente, com a alma e com o sangue, com toda a vida em mim; mas eu não sei cantá-lo, não sei vivê-lo, não sei onde reside essa força tempestuosa de sempre rir, sem temer que a voz se erga, efémera. A minha boca, em vez, descansa impávida; como as minhas tímidas cordas vocais. Porque para mim, ao vir o momento, nada evita a que considere a minha pequenez, a minha contingência; o ser produto do acaso, da total insignificância. É que poderia ser tudo diferente com a mais débil interferência, pelo que nenhum de nós nasce para – para mudar o mundo – mas nasce apenas. Eu, pelo menos, apenas vejo, apenas ouço, apenas sinto, apenas escrevo.

Dão de si as últimas linhas – carregam o peso das últimas palavras de um caderno cheio. Como desesperam, coitadas, na esperança de harmonizarem os fins com os começos. Aqui, no entanto, nesta página e neste caderno, não haverá harmonia quando eu terminar de escrever. Como os outros não têm culpa dos seus sons, também os cadernos ou as palavras não têm culpa dos seus fins, dos fins que lhes são impostos. É em mim que recai a culpa; sou, em última instância, o criador de tudo isto: deste cenário, deste caderno, destes sons dos outros. No centro do cosmos, na raiz do mundo humano; são os homens, sempre os homens.

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