Mil Homens
literatura. música. arte digital.
As chuvas que nascem, as rainhas que morrem.

Nasceram as primeiras chuvas, e com elas veio o salgado odor de um oceano porvir. No meu nariz – este bizarro apêndice esburacado – o sal torna-se doce como se fossem as lágrimas de alguém que não se quer ver chorar ou que chora por nós. É por isto que o meu corpo se enamora. Estes opostos, que não se detestam mesmo que se desentendam, fazem-me crer na importância, na relevância das coisas em si. A verdade, no entanto, é que nada disto importa; nem estas primeiras chuvas, nem a rainha que morreu, nem aquilo que eu associei às primeiras chuvas e à rainha que morreu. Nada há de intrinsecamente valioso nestas coisas, somente acontecem, sucedem-se, nesta estranha conceção do tempo que de lá vem, já aqui está mas não se demora. Entenda-se – porque estas coisas facilmente se tornam em mal entendidos – o que quero dizer é que se chovesse e não estivesse cá alguém em quem chover em cima, um resquício qualquer de vida para reagir à humidade, então a chuva nada significaria. Nem chuva seria. Do mesmo modo, uma rainha solitária que reinasse na sua ilha deserta, ao morrer, nada seria, nunca teria sido nada. É que a rainha só é rainha porque alguém assim lhe chama, tal como a chuva só é chuva porque eu lhe chamei “primeiras chuvas“. Sem alguém que assim as nomeie, que lhes dê nomenclatura e importância, nada são; e isto porque nomenclatura e importância são meras construções humanas que por mais belas ou funcionais ou universais, nunca adquirem valor próprio. Têm a efemeridade do homem, essa doença terrível da subjetividade.
É uma pena, eu sei, e não deixa de ter um toque de dramatismo, mas incomoda-me veementemente. De certa forma, todos os dias da minha vida são exercícios de incrementada dificuldade onde, primeiro, tento aprender a viver com esta informação e, depois, tento desculpar-me por não saber como. É que, como a rainha, as pessoas continuam a morrer (e morrem mesmo!) o que, desde logo e por puro princípio, colide frontalmente com a minha famigerada crença em resoluções, em respostas que valessem por si mesmas, estivesse lá o homem para vê-las ou não. E nem me refiro às grandes perguntas, os desafios da vida, não; falo daqueles que, por exemplo, ao morrer, deixam o comer ao lume. Quantos não morrerão a meio de um pensamento? O livro a cinco linhas do final do capítulo? Eu diria até que, de entre todas as coisas do mundo, estas deveriam incluir-se nos atos mais injustos, precisamente pela sua vulgaridade. Que diferença faria ao agora morto ter acabado o comer ou o capítulo? Nenhuma; e, por isso mesmo, é de uma pura crueldade matá-lo antes. Mas acontece? Acontece. E porquê? Porque o mundo é arbitrário, tem livre-arbítrio, está para lá de nós na sua liberdade, e nós para cá andamos, com as nossas limitações, a procurar impor ordem nas mais ínfimas insignificâncias para que nos confira a mais ínfima segurança, uma ilusão que nos aqueça a angústia sempiterna de nada termos que se mantenha, nem nós próprios.
Claro está, no entanto, numa variação da sabedoria popular, que bastaria dar um capítulo antes de morrer, e logo se quereria o livro todo, e daí todos os livros que ficaram por ler. Em pouco tempo, estaríamos a viver as Intermitências saramaguianas, com cada velho raquítico e ressequido agarrado, em desespero, à ténue linha da vida, por ainda lhe faltar a Ilíada, a Bíblia, ou o mais recente romance do Nicholas Sparks. Por esta altura, século XXI, ano 22, já são publicados mais livros por ano do que o número total de leitores – o que não é, por si, assim tão impressionante dado que não são assim tantos os leitores – mas, neste cenário onde a morte espera que terminemos os livros para não nos interromper, não nos deixar a meio, com coisas por fazer, então aumentar-se-ia ainda mais a publicação. Um livro por segundo, por milissegundo, por microssegundo. Se há coisa que o homem é, é criador de artifícios; e nada fazemos tão bem, como arranjar desculpas, pretextos, argumentos no limiar da razão, mas em que possamos crer, fundamentalmente, tornando assim a vida mais fácil.
Como se pode ver, ou concluir, não há muito mais a fazer para lá de aceitar que as primeiras chuvas nasceram, que a rainha morreu, e que só nasceram porque eu as vi nascer, e só morreu porque eu a vi morrer – não eu, mas alguém viu, certamente. Muitos outros ver-lhe-ão o corpo inanimado, a carne que a terra há de comer alheia à sua realeza (afinal, não a distingue da carne da plebe), aceitando-se assim a sua morte e generalizando-se a ideia que a rainha existiu, continuamente, desde que nasceu até morrer, e que ao morrer, ou seja, ao parar-lhe o cansado coração, estacionando o sangue que deixou então de nutrir os reais órgãos que a perfaziam, órgãos em tudo semelhantes aos nossos, que nesse momento, dizia, a sua condição de existência tornou-se a memória dos que a recordam. Será, talvez, a nossa humanidade, o que nos une enquanto espécie, o que nos dá integridade. Todos somos fruto desta irreparável banalidade, sujeitos sempre relativos, sempre circunstanciais, o que invariavelmente nos torna mesquinhos, inimigos. Contudo, iguala-nos. O humano comum, no cerne das divergências.
“Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol, para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.”
Agustina Bessa-Luís – A Sibila
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