Mil Homens
literatura. música. arte digital.
2022
Uma revisão precoce.

Serenamente, o sol nasce por detrás das nuvens, omitindo o esplendor das suas cores nascentes aos espectadores terrestres; pelo menos, aos deste lado do planeta, deste ponto específico do planeta. Os pássaros cruzam o céu madrugador, intimamente acarinhados pelo sol que nasce e pelo céu que aclara como se estabelecessem um ponto íntimo de ligação, uma totalidade que se mantém apesar das invariáveis diferenças. Os pássaros, o céu, o sol. Eu, daqui, suspenso pelo sono e pela cansada vontade de me aquietar, nada mais posso do que observar como forasteiro, como estrangeiro, como emigrante, como apátrida. Pudesse suspender-se este momento e eu com ele, ainda mero espectador, permanecer neste retiro da infinitude, imiscuído na serenidade que anuncia, somente, a violência que virá, a crueldade, a degradação – tudo o que ainda não se deu, que se dará, talvez, mas a ausência da sua certeza é o mais próximo de uma paz concreta, genuína, num mundo em guerra. Nada em mim teme este silêncio; muito mais me atemoriza o som do movimento, não pela sua essência de mudança, de transição, enfim, de perda – mas pela sua indiferença. O eterno contempla-se, e a contemplação é em si um ato perfeito, puro ato sem potência, que nada mais necessita, de onde nada mais se espera. Já o contingente vê-se, não se contempla, e a visão até pode despertar as mais violentas paixões, mas não são mais do que momentos de teimosia, que logo se sucedem, logo se confundem na memória, logo se degradam e apodrecem com a carne que as originou.
Em criança, morreu-me um pássaro nas mãos, apesar da intenção original de o salvar. É essa, resumidamente, a intervenção humana; e todas as tentativas de recuperação, de restauro ou reconciliação, são já meras representações, um teatro do faz-de-conta em que se descreve o humano lateralmente, toma-se a parte pelo todo na ânsia da bondade, da ordenação, do reverso da moeda que daria sentido à destruição, à corrupção. Contudo, nessa imagem do pássaro – primeiro moribundo, o coração arrítmico e atacado, e depois morto, o coração estático e em silêncio – vive a invariável ação humana, desapegada das idílicas intenções, das profecias utópicas. A vida é, em si, consumo – ignorante ou consciente; e o humano é o maior, o mais cruel, o mais desenfreado consumidor. Sem predadores, não tem motivo para dosear a fome e, sem finalidade, num mundo de cálculo e definições, num mundo de extravagantes conceitos, de intolerantes construções, num mundo de peças e ferramentas de função única – num mundo, enfim, inundado no movimento, na indiferença que o movimento cria, não tem motivo para se saciar. Preenche o silêncio com a gula, a sempiterna fome do progresso.
A serenidade do dia que nasce sustém-se ainda; a cúpula incandescente de fogo vivo que viaja lá do longe até aqui, transparece pelas nuvens como se fosse em demasia, um tal excesso que transborda e infecta a banalidade com algo puro, um infinito que se anuncia num rosto de ouro. A natureza, longe das conjecturas e dos limites do conhecimento, é o que ainda retém sinceridade, a expressão desnuda da vida cujo consumo é um ciclo, fins e inícios integrados num respeito deseducado, uma des-instrução. Não deixa de ser consumo, não está liberta dos nascimentos e mortes, das injustiças que a vida alberga inerentes na própria existência. Afinal, que mais poderia fazer o pássaro, empurrado do ninho pelo irmão, em queda para o abismo fatal? Como se salvaria a tartaruga, a correr desalmada pela praia ainda mal acabada de nascer, desesperada pela proteção dos mares? E, ainda assim, apesar disso, é o homem o mais cruel, pois tem sempre consciência daquilo que oprime, daquilo que contém, daquilo que aniquila – impõe ao outro o que mais teme, olvidando-se da responsabilidade como se, na cisão da violência, fosse tão só uma ignorância inocente. Contudo, dificilmente se poderá reconhecer qualquer inocência nesta ignorância, pelo menos na do lado do mundo que se alimenta dos frutos do progresso técnico desenfreado.
Entretanto, o dia já nasceu, completamente. O sol, gentil, assegura-me que tudo isto é praticamente indiferente, porque a vida resiste, a vida sustenta-se, ainda que nos aniquilemos uns aos outros. E há serenidade em crer que não seremos o fim do mundo, do universo que se expande, mas tão-só do nosso mundo, da nossa realidade, da nossa violência, do nosso caos, da nossa intromissão. Seremos talvez, em pouco tempo, um ponto histórico absolutamente esquecido, já sem ninguém como nós para o recordar, compreensivelmente. Um vírus, erradicado. Uma fome, antropofágica.
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