Mil Homens

literatura. música. arte digital.

Porque somos infelizes.


Venha o diabo e escolha, se lhe aprouver.
Ou então, se tal lhe der muito trabalho,
Se exigir que se crie e cresça e suba (presumindo a inferioridade do inferno),
Que conheça o céu e o rejeite,
Que conheça os homens e os odeie –
Então que se deixe ficar, ressabiado.
Prefiro-o morto, ausente, inexistente,
Do que vindo com contas para cobrar.

É que eu sou ainda quem espera. Quem aguarda.
Pelo que há já tanto a exigir de mim!
Um universo nefasto na sola suja dos sapatos;
No bolso, dois rebentos de uma espécie perdida;
E ainda três novas peças para um velho puzzle de mil peças –
Agora mil e três.

Sou, enfim, um animal desiludido.
O que é pior do que ser só desilusão
Já que o animal tem ainda de sofrer.
Tem de acreditar e sofrer pelo que acredita;
Tem de amar e sofrer pelo que perde;
Tem, intimamente, independentemente, indiscutivelmente
e indecifravelmente de ser animal.
De criar Deus e pecado;
De criar o diabo e chorar;
De rir dos outros que criam;
De depender deles para viver;
De rezar por si e pelos outros;
De vê-los na mesma morrer e, enfim,
ser um animal desiludido.

A todos os grandes atos, sucedem-se desilusões.
A dor da velhice é o desenrolar dos sonhos
Que culminam nos mesmos erros
perante as mesmas questões –
A debilidade humana, que sempre vacila;
Que nos fragiliza e enviúva;
Que estende a mão sobre o abismo
Agarrando-nos maternalmente, o nosso corpo,
Os nossos sonhos, a nossa crença desmedida
De chegar ao outro lado, à outra margem –
Mas larga-nos no epicentro.

Quem sonha, tolera; tolera-se a si mesmo,
Ao seu próprio irrealismo.
Acredita que a cada tempo,
A cada momento que se avizinha,
Um novo começo compõe-se, iminente.
Até eu, quando chamo pelo diabo,
Surpreendo-me a ansiar pela sua chegada,
Apesar de saber que ele não vem, que nem sequer me ouve,
que me vai desiludir, uma vez mais, e, enfim,
Deixar-me só.

É por isso que mudo de ideias,
Que lhe digo para não vir –
Antecipo a desilusão.
Esfrio. Esmoreço. Embruteço os sonhos,
Os idealismos que me atormentam,
Até que não os distinga dos desejos.
Da cobiça. Da inveja. Da mágoa.

Sou um animal desiludido, a antecipar a desilusão.
Desiludo-me ainda, contudo. Desiludo-me sempre.
Como não? Quando há um universo por vir,
Na sola dos sapatos. Dois rebentos por criar,
Num bolso severo e hostil. Três novas peças por juntar,
E o puzzle, já inteiro, já sem espaço ou encanto,
É, enfim, indiferente.


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