Mil Homens
literatura. música. arte digital.
Quando a morte vem.

Detenho-me perante a fragilidade, uma vez mais. Será realmente tudo débil ou sou eu, efémero, que sempre atento no que se pode quebrar? É a amizade um reconhecer mútuo dessa inevitabilidade? Uma distração solene, desejada intensamente por ambas as partes que se esforçam, nos limites do esforço humano, por esquecer que persistem em degradação, sempre em degradação? Rimo-nos porque vamos morrer, choramos porque vamos morrer, vivemos porque vamos morrer – e ainda assim vamos morrer. E a crueldade parece estar exatamente em sermos estes seres – seres para a morte – incapazes de esquecer ou aceitar verdadeiramente que vamos morrer mas que, contudo, descobrem-se ainda nesta loucura; forçados a viver por entre, a querer viver, a querer amar e sentir e sofrer. Somos invariavelmente sensíveis a cada compressão nos nossos corpos a envelhecer; vemo-nos forçados a refletir sobre cada vulgaridade, cada indiferente momento, porque eles trazem sempre algo novo em que pensar, como um anúncio eterno da novidade do mundo e do assombro do estar vivo.
Aqui, no jardim botânico, dá-se agora um desses momentos: tenho pássaros em meu redor; árvores que se projetam, seculares; uma fonte algo megalómana; breves traços humanos – passeios, escadas, muros – aos poucos invadidos pela natureza. Uma serenidade trespassa em cada elemento que perfaz este instante, tornando-o atípico, excecional, porque nada pede ou estende, exige ou entrega. É, intimamente, indiferente; indiferentemente, íntimo. É – num sentido que o verbo ser, copulativo, sempre tão exigente com o predicativo, permite tão-só um pressentimento, nunca a compreensão. Reconheço aí a fundamental diferença que nos segrega e isola dos outros seres do mundo: somos existentes assim, factualmente, aqui, agora; e forçosamente conscientes dessa facticidade.
Quando morre alguém, esta serenidade não compreende. Quando morre alguém, o colapso silencioso e circunscrito que perturba a simplicidade humana, é algo que esta serenidade simplesmente não compreende. Se alguma coisa, esta serenidade é a antítese de tudo o que há de humano na experiência da morte, dos desesperos frustrados, do questionar estéril. Aqui há, em vez, uma circularidade; aqui neste jardim, quando algo se perde, é só aparente, porque o organismo supera a unidade da árvore, da flor, do insecto. A vida não se conhece como o oposto do nada, não questiona o monumental facto de existir quando era tão mais simples um eterno vazio infinito, nem sequer pondera na longa linhagem genética que tantos esforços ativos exigiu para que, neste momento, neste presente no jardim botânico, houvesse esta árvore e não outra, esta flor, este insecto. Eu podia, numa corrida rápida, agarrar o pássaro que me circunscreve em saltinhos breves, entregue ao desejo de se regalar com as migalhas junto aos meus pés. Ele tão conflituosamente me olha, de lado, temendo-me e amando-me simultaneamente, e tem razão; porque eu podia realmente agarrá-lo, se fosse veloz o suficiente, e terminar-lhe a vida – essa sinuosa experiência que se prolongou por gerações para originar este ser saltante e voador – e nenhuma consequência daí viria. Eu seria ainda eu, apenas eu, mas as minhas mãos – armas tão capazes como o destino, o devir, a inevitabilidade – estariam então manchadas pela crueldade sem sentido. É disto, no fundo, da consciência dessa possibilidade, que a vida se esconde ao enamorar a inocência. No cruel perde-se todo o sentido, toda a moral divina, todas as esperanças e, enfim, todo o encanto.
Morreu-me uma amiga de um segundo para o outro. Nada mudou; nem eu soube quando se deu. A morte não se anuncia como se faz com uma celebração; ninguém convida alguém para vir ver morrer, nada há a oferecer. A memória de uma existência que já não está presente é, talvez, a única bênção que quem morre confere aos que os sobrevivem; porque mais ninguém os conhecerá, mais ninguém saberá quem eram, no que criam, o que fundamentalmente os definia perante a abstrata indefinição da vida. As escolhas que faziam, as decisões que tomavam e o que as motivava. O rosto que envergavam, numa escolha ativa, defronte da imensidão que nunca nos responde se estamos certos ou errados, se somos terrivelmente humanos ou sublimes aberrações. Há quem escolha o altruísmo, ainda assim; perante a indefinição, o total desconhecido, a absoluta incompreensão. E talvez por isso não importe que a minha amiga não viva na história como uma heroína nacional, recordada num soberbo funeral de Estado, e que as bandeiras não desçam à meia-haste para que ninguém se esqueça que a morte veio e a levou. É que há qualquer coisa de heróico – dos verdadeiros, os humanos, os homéricos (e não há nisto contradição, mesmo sendo esses bastardos dos deuses) – em enfrentar a fragilidade da vida ao ser frágil; no arbítrio, livre e consciente, de abraçar a fragilidade como um íntimo familiar e usá-la para medir cada ação, para retrair os danos nefastos que causamos, para compreender a experiência dos outros que é, no fundo, paralela à nossa e por isso igualmente enigmática e avassaladora.
A minha amiga é, agora, a memória. Na serenidade deste singular momento, no jardim botânico, é como se a morte não fosse real, tão-só uma ilusão advinda de contos fantásticos, como lobisomens, bruxas ou dragões. É a dimensão débil da minha existência que se deixa enganar e degradar nesta serenidade, tornar-se parte dela como refúgio de tudo o que intimida no viver; já a minha outra parte rejeita tudo isso veementemente. Ensina-me, em vez, a reconhecer-me na fragilidade, a saber-me prestes a quebrar e como isso, na sua delicadeza, embeleza cada momento. A memória vive aqui, transfigura-se em ânimo e instiga-nos a reencontrar quem perdemos, os seus modos de ser, as suas fundamentais estruturas. O que herdamos, por entre o viver, e que se torna parte de quem somos. A herança que nos sobrevive.
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