Mil Homens

literatura. música. arte digital.

Geração da decadência.


Viver conformado com os anúncios do fim do mundo parece ser a grande herança de uma geração expectante à geração da decadência. Eis-me aqui. Eis o fim do mundo. Eis o reles desinteresse. Quando o Pedro berra “Lobo!” vezes e vezes seguidas, não é por castigo que o povo deixa de vir; é por desprezo e desinteresse. E note-se: o castigo ainda se esconde na pretensão de ensinar alguma coisa; já o desprezo e o desinteresse, por outro lado, são somente formas de destruição corrosiva, tentativas de remeter o que quer que seja ao esquecimento.

Talvez por serem esses os seus efeitos, tomamos o desinteresse por algo natural, como se fosse o nosso organismo, na sua pura inocência, a escolher não querer saber. Por isso, não o questionamos, não pensamos no que não nos interessa. O cerne da questão prolifera precisamente deste ponto, a nossa condição submissa: nem o interesse nem o desinteresse são nossos – ou dito de outra forma, não dominamos o que nos compele ou o que nos repulsa, o que, no imediato, torna-nos servis de quem domina as influências. O que torna esta geração a da decadência? Não é somente o desinteresse – esse atravessa as eras – é o desinteresse do e no desinteresse; a ignorância da ignorância. Numa palavra – o não querer saber de não querer saber. Connosco, quebrou-se a ilusão iluminista que o acesso era a chave para a emancipação; nos seus idealismos, menosprezaram a verdadeira extensão do conforto da submissão.

Não somos nós a dominar os interesses, as vontades – nunca fomos, nunca seremos. O mais elevado dos seres humanos, o mais iluminado do seu tempo, é ainda produto das suas condições. As suas convicções, os seus desejos – as suas vontades são, ainda e sempre, produto; por isso não somos originais mas – nas palavras sábias de Cláudia Nayara – réplicas originais. Da mesma base, deste mesmo fundamento social e biológico, somos desfigurações que a produção em massa invariavelmente gera. São pequenas pressões, pequenos traumas – chamemos-lhe assim – que nos abalam e, como um solavanco na impressora esborrata a perfeição da letra negra sobre a brancura da folha, também estes traumas geram fissuras, imprecisões, desvios temporais que nos colocam fora do tempo. É então que questionamos os pressupostos. Somos, se se quiser resumir, produto de uma intensa e precoce pressão biológica e social em que destoam, no tempo de uma vida, momentos de trauma que resistem a toda a biologia e sociologia.

O problema é que não se sabe viver traumas; já não se sabe viver traumas. Aliás, não só não se sabe viver traumas, como se confrontam os traumas com a mais deplorável inércia. Somos a geração da ignóbil, precoce, emancipação que se viu necessitada de tutela e encontrou-a na mesma submissão contra a qual a geração anterior se insurgiu – desta vez, contudo, autoimposta. Pense-se: qual seria, hoje, a necessidade de censura? O mundo, como o vivemos, é já um filtro e cada um escolhe, na sua inconsciência, sobrepô-lo primeiro a si mesmo e depois a tudo o resto. Deixou de ser necessária qualquer imposição física, qualquer restrição violenta – afinal, as ideias, o universo do que se viveu e pensou (e o que importa a validade desses pensamentos?) estão livremente perante cada um. Já não é preciso esconder livros nas malas de viagem, vindos da Europa, para que a polícia não os encontre; ou, na penumbra da noite, distribuir panfletos com o advento da liberdade. A escolha, no entanto, na sua generalidade, é a não-escolha, a abstenção, a renúncia da própria escolha. Não é o dizer sim ou não – é o dizer “não quero saber“; ou melhor, é o nada dizer sequer. Não se digna com uma resposta porque não se ouvem sequer as perguntas. Preferem-se as fantasias que se vivem nos telemóveis, nos ecrãs, as para-conversas num universo parassocial, os fanatismos ignorantes, a simplicidade e inequivocidade da repulsa dos outros e da veneração dos nossos. No fundo, quer-se o estático, o que se mantém claro e simples, as fronteiras precisas do que sentir e de quando sentir.

Admire-se – mas tudo em nós é dinâmico. A própria vida define-se neste incessante dinamismo que se impulsiona a si mesmo, que obriga a vida à constante mudança e adaptação, ao frenesim do movimento que não se domina. Nós, contudo, ambicionamos a quietude; queremos a segurança e matamos e morremos por ela. Damo-nos, o que nos define, a qualquer um que nos prometa o silenciar do caos, num ato de violência contra a nossa própria natureza, a nossa própria vontade de sobreviver e superar. Ao longe, o que se ouve, é o anúncio da morte destas ilusões: se não somos nós a assumir este movimento caótico que move a própria vida, a aprender a nadar na sua violência e a aceitar a impossibilidade de o dominar – e não é o mar o exemplo perfeito? – então será ele que virá, qual onda gigante, submergir-nos na sua imensidão e nós, asfixiados, de lábios roxos, ainda crentes que controlamos o presente.

Na máquina, o paradoxo é o fim; para nós, para a vida, o paradoxo é o começo, o eterno recomeço, a cada instante. Ser uma indefinição paradoxal é a humanidade em nós, é o caos que nos faz. A ordem, na sua aridez, é-nos absurda, mas queremo-la porque queremos segurança ou, pelo menos, a mais credível versão dessa ilusão. No entanto, ao meu lado, um homem remexe no caixote do lixo numa qualquer esperança vã de encontrar algo para vender, para poder depois comprar a sua forma de libertação. Há uma ameaça de violência nos seus gestos que transparece a urgência dos seus desejos, e que invalida todo e qualquer idealismo. Relembra-me que somos todos animais, ainda e sempre animais, e que amamos com a violência que só a ameaça perpétua da morte pode impulsionar. Vivemos todos para a morte, ela é ainda e sempre a nossa mãe obscura. Neste homem, até no mais ténue dos seus gestos, manifesta-se a compreensão dessa difícil premissa – sendo mais livre, em cada gesto, na sua prisão, do que todos os outros que me rodeiam, de olhos fixos nas ilusões supérfluas de um mundo exótico e desumano. No seu paradoxo, este homem compreende a vida na sua crueza, no seu movimento perpétuo e inefável.

Qualquer animal luta para não morrer, mesmo que inconsciente da morte, o que faz do niilismo a mais absurda alienação. Qual será a herança desta geração que, no refúgio da covardia, resume-se a ser a negação da própria vitalidade?

“Ai, meus irmãos! Sabemos um pouco de mais de cada um! E há muitos que se tornam transparentes para nós, mas não é por isso que podemos atravessá-los.
É difícil viver com pessoas, por o silêncio ser tão difícil.
E não é com aquele que detestamos que somos mais injustos, mas com aquele que nos é absolutamente indiferente.
Mas, se tens um amigo que sofre, sê um lugar de repouso para o seu sofrimento, mas como que uma cama dura, um leito de campanha: será a melhor maneira de lhe seres útil.
E, se um amigo te fizer mal, diz o seguinte: «Perdoo-te o que me fizeste; mas teres feito isso a ti mesmo – como poderia eu perdoá-lo?»
É assim que fala todo o grande amor: este supera mesmo o perdão e a compaixão.”

Nietzsche – Assim Falou Zaratustra
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